Pode uma visita ou uma vista ser nuclear? E o que se vê num sítio onde foi feita espionagem nuclear? Bem-vindas e bem-vindos a um Porto secreto – In Podcast TSF
Nuclear no dicionário da Porto Editora: relativo ou pertencente ao núcleo; relativo ao ponto mais importante, essencial, principal; na biologia, diz respeito ao constituinte essencial da célula; na física, refere-se ao núcleo atómico que faz uso da energia que se liberta da desintegração ou fusão dos constituintes do núcleo. Sem o dicionário nas mãos, é hora de subir. A uma e a outra.
Do topo de uma pode ver-se a outra. A outra, a segunda, é uma de seis irmãs. Mas quando a ela se sobe, calcorreando mais de duzentos degraus até ao cimo do arco do seu corpo, como se fosse um prédio de quase vinte andares, quando a ela se sobe, vê-se muita coisa – uma vista inigualável, há quem o diga sem pestanejar: “uma experiência única, fantástica, para repetir”, afirma Sofia. “É mesmo uma sensação maravilhosa”. Aldous Huxley falou-nos das portas da perceção no Admirável Mundo Novo, publicado em 1932. Não seria nesse tipo de ambiente que estaria a pensar Eduarda Catalão quando, depois de concluída a experiência, diz aos microfones da reportagem da TSF que se sentiu “a entrar noutro patamar, noutro mundo, noutra visão”.
Mas não se imagina o que se pode ver a partir da primeira… por mais vezes que se cruzem margens e se atravesse este Douro que a muitos veste a pele.
Na serra do Pilar, junto à Ponte de Dom Luís I, do lado de Vila Nova de Gaia, fica o Instituto Geofísico, na tutela da Universidade do Porto, quase desde logo após a implantação da república. É o único sítio de onde se podem ver as seis pontes sobre o Douro. Foi em plena Ponte da Arrábida que Pedro Pardinhas, fundador da Porto Bridge Climb, nos falou, pela primeira vez, desse local meio secreto: “há uma estação sísmica, um bunker, construído em 1962 e financiado pelo governo dos EUA, a pretexto de um estudo sísmico a nível mundial, mas o verdadeiro intuito, no contexto da Guerra Fria, era controlar os ensaios nucleares da União Soviética”.
A estação sísmica da Serra do Pilar passou a fazer parte de um conjunto de centena e meia pelo mundo fora. O diretor do Instituto de Geofísica (IGUP) na altura da construção da estação sísmica americana era Carlos de Azevedo Coutinho Braga, professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Hoje é Helena Sant”Ováia, atual diretora do IGUP. Com ela, descemos ao “bunker americano”, que em breve poderá ser visitado por turistas, no âmbito da parceria entre a Faculdade de Ciências e a Porto Bridge Climb:
“Estamos no bunker americano”, começa por dizer a nossa anfitriã. No início da década de sessenta, houve um organismo do governo dos EUA “que contacta o diretor do Instituto, propondo-lhe a oferta de uma estação sísmica, com um conjunto de instrumentos que os Estados Unidos ofereceriam a Portugal”. A oferta terá sido feita também aos institutos congéneres nas universidades de Coimbra e Lisboa, mas era uma oferta única para o país e “o Porto foi o primeiro a responder”. Houve que negociar o local: “opta-se por colocar a estação sísmica num local específico, em vez de ficar no edifício principal, de modo a estar mais afastado do ruído”. Assim nasceu uma “construção subterrânea a que nós chamamos “o bunker””.
A inauguração aconteceu em 1962, depois de o governo americano enviar um conjunto de três sensores sísmicos, de curto e longo período, de modo a ter informação sobre “eventos sísmicos de todo o planeta”. Quase sessenta anos depois, ainda funcionam.
Entramos na “sala de registo”. Sant”ovaia explica que “na altura o registo era analógico e agora é tudo feito de modo digital”. Os sensores estão ligados a computadores que “armazenam os sinais”. Quando os americanos ofereceram a estação, tudo era diferente: “Era colocada aqui uma folha para cada dia, fazia-se os registos e ao fim de 24 horas a folha era retirada; cada folha tinha 24 linhas, uma linha para cada hora”.
O protocolo de colaboração que permitiu a instalação de uma estação sísmica no IGUP, na Serra do Pilar, no lado de Gaia junto à ponte de Dom Luís I, mostrava que “não há almoços grátis”. O que o governo de Washington pretendia era que “periodicamente, estas folhas de papel fossem enviadas para os Estados Unidos” para depois serem microfilmadas, retornando posteriormente as folhas para o Porto. Só em 1993 este tipo de cooperação foi terminada por decisão do governo americano, que então fez saber que a colaboração terminava, e com ela o apoio financeiro que sempre prestaram, inclusive para a reparação do material, mas que “podíamos manter os equipamentos”.
Durante cerca de trinta anos, Washington queria receber informação detalhada de tudo quanto fazia tremer a terra… mira apontada, claro está – a Guerra Fria estava no auge – mira apontada aos testes levados avante pela então União Soviética.
Helena Sant”ovaia recorda que “em 1961 iniciaram-se negociações entre as duas superpotências para banir os testes nucleares atmosféricos, subaquáticos e até espaciais”. Enquanto isso, a diretora do instituto aponta para a foto do atol de Bikini, onde em 1946 os norte-americanos tinham realizado um teste nuclear. Já lá vamos. Helena Sant”ováia continua a vestir de História este pequeno cubículo, fechado, sem janelas, mas inserido no instituto geofísico no verde da serra do Pilar, debruçado sobre o Douro numa manhã de sol:
“Ao assinarem esse tratado para eliminar os testes, concordaram que só lhes restava a alternativa de realizar testes nucleares subterrâneos, portanto sendo feitos em plataformas subterrâneas era mais difícil espiar e ver quem andava a fazer testes e onde, porque já não tínhamos a imagem do cogumelo nuclear provocado pelas explosões como tinha acontecido no atol de Bikini. Nasce a necessidade de se saber quem andava a fazer testes, os americanos queriam saber o que os soviéticos andavam a fazer e vice-versa.” Porque, refere, “a União Soviética também criou uma rede semelhante a esta”. Procuravam saber o que é que o inimigo andava a fazer”. A professora da Faculdade de Ciências mostra-nos o exemplo de um teste realizado em 1987, já em plena perestroika, no território do atual Cazaquistão.
A rede de estações sísmicas, montada e financiada pelos EUA, que forneciam informações sobre os testes nucleares soviéticos ia do Porto a Ponta Delgada, de Málaga a Adis Abeba, de Sá da Bandeira em Angola, nome colonial da atual Lubango a Brasília, de Nairobi a Adelaide, de Bogotá a Quetta, de Natal a Wellington, enfim, uma rede mundial de sismografia standardizada com mais de uma centena de estações, que cruzava hemisférios e latitudes. Nome de código da estação sísmica da serra do Pilar, em Gaia… PTO.
Mas não é só coisa do passado. As estações sísmicas ainda registam os testes nucleares que no mundo se fazem: “aqueles eventos de testes levados a cabo pela Coreia do Norte chegam ao nosso conhecimento através das estações sísmicas. Este tipo de sismologia, que até é designado por sismologia forense, continua a ser utilizado”.
A académica responsável pela estação sísmica na margem sul do Douro, afirma que além da componente de espionagem nuclear, o equipamento permitiu “obter um conjunto de dados científicos volumoso, ao longo de trinta anos, que permitiu saber-se mais acerca da forma como as ondas sísmicas se propagam”. Ou seja, além do objetivo militar e político, “permitiu colher um conjunto muito vasto de informação que tem grande aplicação científica”. A ciência a avançar de “forma subsidiária”. Ou o momento em que a ciência não se queixa da interferência política.
E o que faz, afinal, um cartaz que retrata o nascimento do Bikini peça de vestuário, tão deste tempo de praia, o que faz o Bikini numa estação sísmica? “Está aqui pelos testes nucleares feitos nesse atol, em que foi colocada uma bomba debaixo de água, e este teste específico tinha o objetivo de avaliar o impacto nos barcos ali à volta. Foi feito em 1946, foram feitos três testes então e foi muito contestado, uma vez que a 2ª Guerra já tinha acabado, já tinha havido as detonações de Hiroshima e Nagasaki, o mundo já tinha um pouco a consciência dos efeitos nefastos das bombas nucleares”. Por conseguinte, “foi muita a contestação”. Paralelamente, “em França, o suíço Louis Réard (1896-1984), um engenheiro ligado ao setor dos automóveis, mas que trabalhava também no desenho de peças de roupa, desenhou também uma fato de banho para mulheres. Procurou um nome para o que tinha acabado de criar e como tinha havido a explosão no atol que tinha sido impactante, escandalosa, decidiu chamar-lhe Bikini”. Portanto, a peça de vestuário deve o nome a um teste nuclear.
Além da formalização do acordo e início das visitas ao Instituto Geofísico, o futuro próximo irá trazer mais experiências de passeios por lugares científicos secretos, ou menos conhecidos do Porto: além do Instituto Geofísico com a sua estação meteorológica e sísmica, também o Observatório Astronómico no Monte da Virgem onde fica o Círculo Meridiano de Espelho, com uma cúpula que abre para o céu. Ambas as visitas vão ter como guias alunos da Faculdade de Ciências.
Vamos fazer o percurso ensinado pelo Carlos Tê na canção do Rui Veloso, da Ribeira até à Foz. A meio do caminho, paramos na Ponte da Arrábida, para subir a pé até ao topo do seu arco. Até lá cima, é o equivalente a subir dezoito andares de um prédio.
Pedro Pardinhas, da Porto Bridge Climb, empresa que fundou para organizar estas visitas por uma cidade desconhecida aos olhos da maioria, dá conta dos “262 degraus, do sopé ao topo, 54 metros de altura desde a marginal, o equivalente a um prédio de 18 andares”. Desde o Dia de São João de 2016 que a visita está disponível para turistas e já “cerca de 40 mil pessoas” a fizeram. No passado, clandestinamente, o arco da ponte serviu de abrigo, de folias são-joaninas, de atalho para um padeiro que vivia numa das margens e trabalhava na outra. Uma ponte que “já teve muitas vidas”. A ponte, inaugurada a 22 de junho de 1963, que trouxe a inovação do arco sem apoio no rio, a ponte de 72 pilares, a ponte de quase vinte mil toneladas de cimento, a ponte pela qual passam, em média, 150 mil veículos (a segunda maior circulação nas pontes do país, logo a seguir à 25 de Abril), a ponte que, atualizando os preços, custou menos de metade do Estádio do Dragão, 60 contra 125 milhões da casa do FC Porto, a ponte cujo arco foi local de pedidos de namoro e casamento. A altura limitaria certamente as possibilidades de uma nega. Obra pensada por um homem que dizia ter “cem anos de experiência profissional”. Como? “Trabalho há cinquenta e faço o dobro dos outros”, disparava o engenheiro das pontes do Porto, para quem cada invenção e cada inovação era “uma rutura com os regulamentos”.
Daqui de cima, do arco da Ponte da Arrábida, tutelada pela Infraestruturas de Portugal, não se vê a estação sísmica e o bunker americano. Mas é uma vista nuclear sobre um Porto que parece postal ilustrado. Mas nem tudo é civismo, por aquilo que cai junto ao arco da ponte, atirado por quem atravessa de carro o tabuleiro da obra projetada por Edgar Cardoso, numa cidade – em duas cidades divididas por um rio – com várias pontes: “já aqui caiu de tudo: garrafas, maços de tabaco, até caixas de piza. Mas o nosso papel é ir mantendo isto limpo e seguir em frente”. A subida à Ponte da Arrábida é acompanhada por uma exposição fotográfica que conta a história do projeto de Edgar Cardoso (que dizia que “todo os rios têm sítio para construir uma ponte, é preciso é encontra-lo”) mas também a história – resumida – das várias pontes sobre o Douro. Pedro Pardinhas espera que “daqui a uns anos possamos dizer que a Ponte Dona Maria não está inativa e que ela já tenha uma ciclovia e um percurso pedonal, para ligar as margens e para as pessoas poderem aproveitar aquele monumento”. Visitas a locais com séculos de história como a Casa Museu Fernando de Castro, em Costa Cabral, em parceria com o Museu Nacional Soares dos Reis, já são uma realidade para ser conhecida por este turismo pouco de massas, mas o Porto Bridge Climb de Pedro Pardinhas tem mais trunfos na manga: “já divulgámos visitas à quinta de Vilar D”Allen, no Freixo, à fábrica de conservas Pinhas, em Matosinhos, torre da igreja do Marquês e galeria Nuno Centeno. “Mas há ainda outras coisas na calha”, remata.
Não há contradição inerente ao termo, quando se tenta mostrar um Porto Secreto? É que o secreto deixa de o ser: “acho que não vamos chegar nunca a esse ponto. Por exemplo, nós aqui na ponte temos dez mil visitantes anuais, é ótimo para nós, estamos muito gratos, mas não é uma coisa de massas, a livraria Lello recebe 1 milhão. E portanto, se nós a cada um desses sítios levarmos mil, duas mil, cinco mil pessoas num ano, já ficamos muito contentes e esses locais passam a ser ligeiramente menos secretos”.
O segredo corre de boca em boca. Como um rio que “se estende até ao mar”.